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SAQUAREMA 2024
Portas Vilaseca Galeria - Rio de Janeiro, RJ
Fotografias: Pedro Victor Brandão

Quem conversa com o artista visual Mulambö, não raramente o ouvirá falar do lugar onde ele nasceu e vive: Saquarema, na região dos lagos do Rio de Janeiro. Ele comenta não apenas das praias paradisíacas, mas também do espaço cultural e, sobretudo, das pessoas que o formaram. Saquarema, dentro da composição conceitual de Mulambö, não é apenas um pano de fundo ou uma paisagem nas quais figuras passam à frente. Ela se torna uma estratégia utilizada pelo artista para construir uma cosmologia própria, assentada no aprendizado através da cultura oral e na convivência com os mais velhos, sejam eles familiares, surfistas ou pescadores.

Na exposição apresentada na Galeria Portas Vilaseca, esse ponto de partida de compreender Saquarema como uma constelação conceitual é apresentada por Mulambö através da reunião de uma série de trabalhos em diversas linguagens, como pintura, escultura e instalação – mostrando a sua inquietação como um experimentador de distintos meios – ao mesmo tempo em que reafirma o seu lugar poético como um artista atlântico, cujas forças vitais e conceituais vêm das sabedorias do mar. 

A mostra pode ser lida a partir de um percurso que o artista delineia como espécie de setores ou atos: um mais próximo de pessoas, cenas e personagens do seu convívio; outro mais conectado com momentos e elementos encontrados na Praia da Vila; e, por fim, um mais conectado com as tecnologias, tradições e saberes mediados pela oralidade.

Logo ao entrar na galeria, o público se depara com um retrato em que se vê uma garota sentada à frente de um mar repleto de baleias e sob um céu alaranjado. Aqui, a pintura que recebe o público parece encarnar também um papel de guardiã, amparada pelo mar, enquanto a família de baleias ao fundo nos faz rememorar sobre um certo senso de coletividade e família reiterado pela própria pessoa retratada na obra, Diulli Mariani, prima que cresceu junto ao artista. A figura, vestida de branco, tem a textura da sua pele pintada com as cores que se tornaram características dentro da visualidade de Mulambö, os tons de vermelho. O rubro reincide ainda numa estrela, localizada no topo da pintura, como uma inserção gráfica e um anúncio do que está por vir depois do entardecer. A estrela é um símbolo que aparecerá com recorrência na mostra e, dentro do universo conceitual engendrado pelo artista, está intimamente conectada com uma posição de uma celebração da vida.

Os trabalhos próximos a essa grande pintura seguem nessa mesma esteira, trazendo à tona questões como crescimento, amadurecimento e mudanças – como na escultura onde se vê um homem conectado a um peixe por meio de um arco-íris, para tratar sobre ciclos e dinâmicas entre alimento e vida.

No segundo conjunto organizado por Mulambö – mais próximos a momentos capturados pela memória da praia – encontramos trabalhos nos quais o artista se esmera também no fazer escultórico. Como na composição onde há a construção de uma Yemanjá, orixá ligada às energias oceânicas e marítimas. Por meio da geometria e de um cromatismo particular, o artista arquiteta uma espécie de silhueta de uma sereia quando vista pelo ângulo da frente e um formato de peixe quanto mirada pela parte de trás.

Ou ainda nas duas pranchas de surf, expostas lado a lado, nas quais o artista esculpe e grava em cada prancha silhuetas do seu avô e sua avó, obtidas através de uma fotografia de arquivo. Essa obra abre espaço para uma fricção dentro do universo estético proposto para essa mostra: ao mesmo tempo Saquarema aparece como lugar, aqui sintetizado pelas pranchas, representa também a ancestralidade e o espaço cultural onde Mulambö foi forjado, como pessoa e como artista. A parafina da prancha da vida, que permite que o surfista não escorregue, nesse caso, está baseada nos laços familiares e no respeito às pessoas que ladrilharam o seu caminho até o agora. 

E, através disso, o artista abre espaço para um terceiro momento da exposição, dedicado a imergir nas memórias da pesca ao mesmo tempo em que re-descobre a sua própria história familiar. Na instalação apresentada no último andar da galeria, há uma reunião de áudios da avó do artista contando passo a passo como se faz uma rede de pesca a partir da sua lembrança. A ambientação sonora é aproximada a uma escultura de uma canoa caiçara que derrama fios de sisal pelo chão do espaço – como uma espécie de alusão ao ditado “o mar não tem cabelo”, proferido muitas vezes como uma medida de cuidado para aquelas pessoas que não respeitam os mistérios das águas. O artista adiciona esses fios à canoa, como uma espécie de dobra ao ditado popular, apostando na imagem de uma embarcação que traz consigo raízes que poderiam, em caso de urgência, ser agarradas. 

Mulambö em “Saquarema” abre um novo capítulo dentro da sua poética, em que dá atenção de maneira especial ao cotidiano, às cenas miúdas e às pessoas que o ensinam a usar a correnteza a seu favor. Na exposição, aprendemos que quando o mar regressa para dentro de si é para que as suas forças sejam redobradas e as ondas voltem ainda mais fortes para tocar a areia da praia. No universo de Mulambö, Saquarema não é somente um lugar geográfico, torna-se um espaço onde, fio a fio, as redes da memória são tecidas com sal, pérolas, estrelas e afeto. 

 

Tiago Sant’Ana

artista visual, curador e doutor em Cultura e Sociedade

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MULAMBÖ

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